Monday, December 24, 2007

Que venha 2008


Vai, Ano Velho


Afonso Romano de Sant'Anna

vai, ano velho, vai de vez
vai com tuas dívidas
é dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
a meia noite, esgota o copo
a culpa do que nem lembro
e me cravou entre janeiro e
dezembro.

vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.

vade retrum, prá trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
não quero te ver mais, só daqui a anos,
nos anais, nas fotos do nunca-mais.

vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrias, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem como cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicolores, rabecas, vem com
uva e mel desperta
em nosso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia, e por um
instante, estanca
o verso real, perverso
e sacia em nós a fome
- de Utopia.


vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casa da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como ovo
o sol a gema do ano novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
agora
é recomeçar
a utopia é urgente.
entre flores e urânio
é permitido sonhar.

Wednesday, December 12, 2007

Máquina de Costurar Saudade

Minha avó era costureira. Nas mais doces lembranças de minha infância reside a máquina de costura de minha avó. Eu ficava ali beirando horas a fio o seu manuseio com linhas, tesoura e passava horas observando seus pés sob o pedal da máquina, aquele vai e vem. Às vezes sentava no pedal e fazia, escondidinho, dele um balanço. Outras, também escondidinho, sentava na máquina e brincava de costureira. Quando surgia o flagrante, ou Bia me via e me dedurava, era um grito só:

-"Sai daí, menina, tu destraveia minha máquina!"

E eu saía, olhando o alpendre perto da laranjeira... A mesa grande cheia de roupas pra passar no ferro, à brasa para economizar luz,e a máquina no canto, reinando absoluta, talvez aquilo que fazia Dona Alda deslizar em sonhos.

O ser costureira deve ter nascido da necessidade de criar a filharada. Eram muitos e o dinheiro pouco. E ela precisava de algum trocado... Não sei bem porque desde que tive contato com aquela mulher, mãe, dona de casa, vó, as coisas já não eram tão ruins. Havia a despensa cheia de frutas e doces, de leite, manga e umbú.

Quando acabava os afazeres no fogão de lenha e acabava a louça lavada numa bacia de alumínio porque sua cozinha não tinha pia, e ela tinha que se virar, buscando e trazendo água de lá para cá, ela se sentava na máquina de costura e, talvez, por ali, tecia os sonhos do que não podia ser. Os sonhos das filhas... Quase sempre os sonhos seus.

De tardinha um café de bule e cuador de pano, só para agradar Chico Moreira que ali ia cortar a lenha do seu fogão.

As freguesas eram quase sempre fiéis. As filhas. As netas. Anália que morava com Dona Olga e a mulher de Zé Rodrigues da venda. Iam lá sempre.

Vestidinhos, camisolas, roupas da moda, emendas, reformas, tudo que uma máquina de costura podia fazer. Em seus olhos pendia a tristeza de sua máquina não ter zig-zag, mas quando ia a Salvador deleitava-se horas na máquina moderna da filha que de tantos apetrechos permitia até um “ elastec”.
Eu, já mocinha, reclamava quando ela colocava botões infantis com carinhas de coelhinhos e gatinhos em minhas melindrosas, quase sempre feitas de retalhos, emendas de roupas que um ou outro não queria mais. Ai, eu odiava botões de coelhinhos, mas vibrava quando ela me mandava na Rua da Igreja, em Dona Loyde, comprar ilhós ou botão. Era fabuloso. Chegava na janela e gritava:

-Dona Loydeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!!!!!

Ela aparecia.

-Vó Alda me mandou comprar tantos botões e um carretel dessa cor...

E meus olhos se entorpeciam ao ver a terna comerciante abrir aquelas gavetinhas recheadas de sonhos, botões de mil cores, linhas das mais diversas, e com aquele cabelo branco preso em coque, Dona Loyde puxava conversa, chamava Evergistro, seu marido, e a compra de botões, feche-ecler, ilhoses e linhas era sempre uma festa.

Nas minhas aventuras de fazer roupa de boneca furtar os retalhos de minha avó era uma arte. Quase sempre muito bem escondidos, para uma emenda num colchão, para isso ou para aquilo, haviam muitos, estampados com flores, listras, outros restos das antigas mortalhas de blocos de carnaval, do “Jacú”, “Sniff” , “Traz os Montes” e “Camaleão” (blocos de carnaval que meus tios desfilavam em Salvador), viviam num saco, uma mina de retalhos.

Isso me garantia convite certo pros aniversários de bonecas. Óbvio que o presente mais bem vindo era um retalho de bom tamanho que garantisse no mínimo um bom vestido para as zambetinhas (bonecas de plástico compradas na feira que mantinham eternamente a posição de bebê).

“-A avó dela é costureira, tem retalho...”

As meninas sussurravam e assim eu ia a todos os aniversários de bonecas. Levava o retalho (furtado é claro) embrulhado numa sobra qualquer de papel de presente amassado de alguma lembrança de parente vindo de Salvador e ai de mim se ela desse falta.

Nem sei por onde anda a máquina de costura de minha avó. Sua vista nublada talvez não mais lhe permita tentar costurar os sonhos que se quebraram ao longo do caminho... A máquina com “zig-zag” talvez nunca tenha aparecido, mas permanece em minha memória seu potencial em reciclar, em fazer roupa velha vira nova, desalento virar sonho e tristeza virar alegria. Sua felicidade em ver as filhas e as netas usando as roupas e vestidinhos mimosos que ela havia costurado com desvelo. Felicidade de artista em plena bienal.

Que pena que o tempo não costura as delícias que vivemos.

Para Vó Alda

Alyne Costa
Brumado, 12 de dezembro de 2007