Thursday, February 08, 2007

Brincadeira com Barro


Havia um tempo em que brincávamos com barro. Quando a chuva deixava úmida a terra era uma festa. O barro era colhido com as mãos em barrancos. Haviam vários barrancos que disputávamos. Os meninos que tinham coragem e liberdade de ir mais longe traziam em suas mãos o barro de melhor qualidade, sem mato, sem tocos de madeira e faziam cavalinhos, boizinhos e carrinhos-de-boi.
As meninas faziam panelinhas. E nosso barranco preferido era o da casa de Maria “Três Saias” ou Lia, para os íntimos, os que a queriam bem e os “filantrópicos” que lhe davam alguma assistência.
A casa de Lia – eu queria bem – ficava na antiga Rua do Pontaleite e era um pouco recuada. Diziam que a velha era feiticeira. Costumava espiar a casa dela quando deixava uma gretinha da porta aberta. Havia muito mulambo, papel e uma escuridão terrível.
Lia fazia café toda manhã na casa de Dona Júlia, levava o pó, o açúcar e o bule. Sempre usava saias, por isso o apelido de “três saias”. Se eram três, nunca contei.
Mas Lia nunca cismou quando arracávamos o barro do barranco em frente à sua casa e sentávamos numa calçada ali perto, horas a fio, amassando, modelando e permitindo ao nosso reino infantil massagear os sonhos das panelinhas de barro.
Também ali perto havia um pé de quiabento. O quiabento é uma planta repleta de espinhos e com folhas porosas. O contato do espinho com as folhas nos permitia traçar desenhos. E as colchinhas de quiabento, como chamávamos as folhas riscadas de espinhos, era outro entretenimento em que ocupávamos as mãos. Por mais anti-ecológica que fosse a brincadeira, afinal arrancávamos as folhas das plantas e seus espinhos para a manufatura, era uma brincadeira que permitia um processo espontâneo de criação. As folhinhas depois de bordadas era jogadas ao léu. E outra brincadeira começava.
Com caquinhos de vidro que encontrávamos nos quintais e terreiros, criávamos verdadeiros banquetes. A comidinha era matinho verde, sementinhas e pedrinhas. E assim de mãos sujas e alma lavada estruturávamos nossas personalidades. Criança tem que pegar na terra, pisar no chão, cair, se sujar, se lambuzar e crescer assim manipulando, criando, tecendo, pintando e bordando.
Quando faltava luz, com as meninas mais velhas, fazíamos grandes rodas e cantarolando os hinos de nossa infância, embalávamos aqueles que anoiteciam. Os velhinhos de bengala, as moças casadoiras que pela praça passeavam e o homens da boa prosa na esquina.
Os meninos com papel de maço de cigarro faziam dinheiro. E assim compravam gado, mercadorias, tornavam-se muito ricos e escolhiam moças com quem casar. Eles também, os mais abastados, possuíam caminhõezinhos de madeira que dirigiam com destreza pela calçada talvez querendo exibir seu status quo. Impressionar mesmo. Ou sugestionar, que importa?
De vem em quando a brincadeira misturava meninos e meninas e aí era uma festa enorme. Era um tal de mãe chamar as mais velhas, já começando os namoros e assim surgiram os primeiros amores. Afetos que não passavam de sonhos.... Mas era assim, num tempo em que a gente era feliz.

Brumado, 8 de fevereiro de 2007

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