Thursday, September 28, 2023

 

Ilísia

Eu achava Ilísia fumar cachimbo a coisa mais linda do mundo.

Sentada, de coluna já curva, no alpendre da casa, macerava o fumo de rolo e preparava.

Vinda lá do Iuiú, aquelas terras de parentes que eu não conheci, com um lenço amarrado na cabeça, pitava que era uma belezura de se ver e eu sentada, no seu encalço, não perdia um detalhe, um gesto, um pequeno traço daquele ritual, místico e solene.

Não tinha brincadeira no mundo que me roubasse daquela presença, da riqueza daquela persona e de seu pouco caso de qualquer coisa mais.

Ilísia, com a pele negra enrugada, mãos escuras do fumo e sua indiferença a qualquer coisa foi a primeira empoderada que eu conheci!

 

Alyne Costa, 29/09/2023

Wednesday, September 27, 2023

 

Improvisos

 

A vida tem encantos sim

Apesar da fome e das guerras

De tanta miséria na face da Terra

Dos muitos desencantos que por si encerra

Não esse poema que como a vida insiste em brotar a cada manhã

Jamais a minha esperança que como criança dança

Mora um erê dentro de mim

Mora uma preta velha que me conta as histórias

Que eu reinvento

E, nesse sustentáculo, que é renascimento

Por fora e por dentro

Eu sigo sendo eu e nós

Um nós, incompreendidos

Oprimidos

Olhados de cima a baixo na delicatessem

Um nós que desata nós e faz laços em abraços sinceros

Lágrimas cedem a um riso de leveza

De não ir mais de encontro à sua verdadeira correnteza:

A arte que é completa em qualquer parte

E a poesia que navega os mares da magia

O que sobra, no todo ou em parte, dessa beleza

Não é alimento!

É sobremesa!

 

Alyne Costa, 27/09/2023

 

 

 

Monday, September 25, 2023

 Perdoai. Mas eu preciso ser várias em mim, às vezes boneca de chita, noutras caixinha de porcelana com cetim. Alyne Costa, setembro de 2023

Sunday, September 24, 2023

 

Solidão de Domingo

Reparem que domingo é um dia de reflexão. Eu costumo refletir aos domingos, acho que até me atrevo a dar uma volta pela manhã, mas chega uma hora que o que eu quero mesmo é ficar só.

Essa solidão que já combina tão bem comigo e que eu costumo ser eu mesma meu abrigo. E aprendi a gostar de rabiscar alguma coisa aos domingos para que ele ecoe meus pensamentos, o sentir e às vezes faço alguma coisa para comer.

Ai hoje me peguei com aquela frase clássica de Clarice acerca da poda de defeitos. Todos nós temos um defeito que não podemos abrir mão, um não, às vezes uma multidão. São defeitos de estimação, como temos amigos e parentes prediletos. Livros, sabores e vícios. Temos coisas que preferimos e isso é tão natural como não acertar o primeiro beijo.

Indecisão me dói na alma, mas eu pago o preço. Está todo mundo querendo ir embora, como se Drummond sussurrasse: “José, para onde?” Alguns lugares costumo conjugar no pretérito perfeito.

Já me doei de doer a pessoas que nem me lembro, mas saí de órbita por um tempo e quando voltei eu não me encaixava mais no mesmo mundo, nem no mesmo modo de viver, a minha fundação estava enferrujada e eu já não me permitia mais recomeços.

Não sei se era eu que não me encaixava no mundo, ou o mundo havia se fechado para mim, pelo menos, a velha forma de viver, já morrí tantas vezes, talvez meu coração seja uma exposição de arte gótica, mas respeito enormemente cada faceta do tempo que vivi, a minha criança curiosa, a adolescente rebelde e a mulher criativa que nasceu, ou melhor, sobreviveu.

Ora ostra, ora um mosaico de fragmentos divididos entre outras vidas, sinto um passado distante tão presente e todos os meus fantasmas costumam me visitar aos domingos, preciso dialogar com eles...

 

Alyne Costa, 24/09/2023

 

 

 

 

A Poesia Brota

 

A poesia brota quando a gente muda

Quando a gente emudece

Quando a gente cresce

Quando um amigo aparece

 

A poesia brota quando a gente sente

Quando a gente entende

Quando a gente surpreende

Quando a gente aprende

 

Brota, quando a gente sobrevive aos inimigos mais vis

Às ciladas tramadas

Às guerrilhas mal contadas

 

Brota, quando a gente enfrenta as tramas

E quase meio louca, canta com a voz rouca

E meio cega, surda, muda, insiste e tira a roupa.

 

Alyne Costa, 24/09/2023

 

Saturday, September 23, 2023

 

Rota

 

Meus heróis estão todos cansados

E meus ombros já não suportam o peso das minhas dores

Não tenho mais esperança nos caminhos de outrora

E o teto está repleto de angústias desenhadas

A poesia triste é meu abrigo sincero

Meu sorriso invisível mora num cheque em branco

Meus sonhos todos mal interpretados

E as cartas do baralho mentem, corruptamente

Asperezas e incertezas, fatiadas em sobremesas

Vou-me embora porta afora

Vou-me

Vou-me

Vou-me para um lugar incerto

Para um reino perdido de Deuses e prantos

Não há para traição acalanto

Nesse reino de maldade e desonestidade

Apenas os morcegos voam

Rendo-me à espera da tal indesejável

E a solidão se faz ponte

Entre o que se foi e o que não mais virá.

 

Alyne Costa, 23/09/2023

Thursday, September 21, 2023

 

Pietá

No silencio escuro da noite que iniciava, o menino voltou ao colo da mãe e chorou.

Suas lágrimas não possuíam mais rebeldia, nem molecagem... Eram lágrimas de dor, aquelas dores de um deserto na alma que as mães não conseguem calar.

Balbuciou segredos, rogou por uma fuga geográfica, talvez algumas reminiscências de infância trouxeram lembranças daquilo que não se pode mais viver.

Quantos segredos moram no deserto da solidão nos apartamentos do centro?

Saiu desnorteado pela porta sem nada dizer.

Deixou no ar o suspense e o desequilíbrio de um idoso taciturno que, teimoso, não pede ajuda.

À mãe só restou uma vela acesa, no imenso caos de si mesma.

Alyne Costa, 21/09/2023

Thursday, September 14, 2023

 

Sentidos

 

Sou flor de sentimento

Presságio

Pressentimento

Sou rosa do deserto

Sem endereço certo

Ré primária

Rocha calcária

Trago desejos em potes e a conta-gotas

Tenho mistérios e miragens

Segredos escondidos nas paisagens

Às vezes água cristalina de piscina

Noutras alma lavada em enxurrada

Mas sigo, sem rumo certo

E digo baixinho como miado de gato:

Poesia não se guarda em porta-retrato.

 

Alyne Costa, 14/09/2023

Monday, September 11, 2023

 

Telefonema

 

Um dia um cristal quebrou

Os cristais quebram

A louça suja

O cachorro late

Alguém come água para chocolate

O setembro é amarelo

Emicida representa

Tantos ausentes presentes

Na vida que segue enquanto vidas se ceifam

Tanto tormento

Armamento

Tanta miséria na contramão

Vidas ceifadas, obliteradas

O preço do bife caiu

Viva as manicures!

Abaixo os telefonemas!

Meio fora de tempo de propósito de inopino

Sobra a mentira

Farsa desgasta

Doeu

Menos em mim

Mais em quem deu

Doerá pra sempre

É eterno o presente.

Nunca esquecerei como numa cena de cinema

O Jogo e o Telefonema.

 

Alyne Costa, 11/09/2023

Wednesday, September 06, 2023

 

Absoluto

 

Quero mil vezes me desesperar

Me apaixonar, sonhar, voar

E, mesmo com desespero

Fabricar meu tempero

Acender os castiçais e perfumar travesseiros

Acender velas e mandar flores

Já não há temores

E, nesse abismo entre você e eu

Há uma fonte de mil quereres

Pouco importa os saberes do mundo

Se meu sonho é o profundo

O enigma, o mistério e o absoluto

Dor e Amor.

Alyne Costa, 6/09/2023