Tuesday, February 08, 2011

Qualquer coisa eu chamo a menininha...



Haviam palavras indecisas naquele silêncio forçado. Era a mulher que lavava a louça enquanto ouvia jazz, mas ainda era a menininha que olhava os ladrilhos cerceando os detalhes e procurando formigas.
Seu medo morava em maçãs vermelhas perfumadas. Morava nas panelas inoxidáveis que agora brilhavam. Nas garrafas de vinho vazias, agora empilhadas num cantinho da área de serviço e que, cúmplices, não revelavam seus segredos e até pareciam namoradas das diversas carteiras de cigarros vazias.
Ameixas podres lamentavam não terem se transformado em geléia enquanto as contas chegavam vigorosas sob o tapete da sala trazendo mais transtorno e latas de cerveja que vazias enchiam o lixeiro e assustavam a moça da portaria.
Enquanto o caos parecia bailar o adolescente ruidoso jogava em seu computador noites a fio e gargalhadas assombravam a vizinhança, ao passo que a menininha procurava dar contorno com sua ternura como se doçura pagasse contas.
A menininha descia a praça e suas mãozinhas deslizavam suaves pelas paredes e de vez em quando mais um ladrilho, uma ou outra formiguinha solitária e esquisita. Os pratos todos limpos, os raros copos, as canecas de sopa e de café. O marido que esperava o trânsito desafogar sentiria alivio? Passaria pelo supermercado e traria uma pizza. Sentariam à mesa e esperariam crédulos que o amor não morresse.
A menininha esconderia triste sua decepção pelo saco de jujubas que nunca vinha. Se esconderia num cantinho e a mulher assombrada desligaria a TV na hora do telejornal.
Leria um poema de Cora Coralina, tomaria um pouco de café, olharia mais uma vez o abandono do aquário indignada da sobrevivência dos peixes e até esqueceria da tristeza após o cansaço da casa limpa.
Agora todos os dias seriam assim, dias de limpar a casa e de lavar a alma. Qualquer ameaça de tristeza, eu chamo a menininha...

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